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PROSTITUIÇÃO E HISTÓRIA TRAVESTI NO BRASIL

PROSTITUIÇÃO E HISTÓRIA TRAVESTI NO BRASIL

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Redação Amara Moira

4 minutos de leitura

Por Amara Moira

Na sua obra História da Prostituição em São Paulo (1982), o delegado Guido Fonseca defende que “o fato verdadeiramente novo na prostituição de nossos dias está na chamada prostituição masculina” (p.215). O “masculina” com que ele caracteriza essa prostituição faz, no entanto, referência a travestis, as quais, segundo o seu estudo, a partir da década de 1960 passam a chamar cada vez mais atenção no cenário urbano. Antes, diz-nos o autor, as poucas travestis que existiam exerciam “uma prostituição, por assim dizer, envergonhada” (p.223), bastante diferente da prostituição que passaria a predominar em seguida (p.223-224):

Não tinham os prostitutos a audácia dos atuais. Hoje, não parecem sentir vergonha de sua anormalidade. Acintosamente trajados como mulheres fazem o “trottoir” pelas ruas, avenidas e praças disputando os melhores pontos com as meretrizes e sempre levando vantagem.

O motivo de uma transformação tão radical de comportamento? Fonseca não é explícito na resposta, mas o seu estudo sugere uma ligação entre essa nova maneira de ocupar o espaço público e as tecnologias de transformação corporal que, pouco a pouco, iam se tornando conhecidas e acessíveis (p.229):

Da média e alta prostituição pequena parcela conseguiu alcançar um dos seus objetivos mais caros, ou seja, uma semelhança quase perfeita com a mulher. Chegam a enganar até o mais perspicaz observador. Seus cabelos compridos ou perucas, seus vestidos, sapatos e bolsas aliados aos trejeitos femininos iludem a maioria dos homens. Além disso, fazem questão de trazer à mostra parte de seus seios (alguns volumosos) para melhor conseguir seus intentos. Tomam hormônios e submetem-se a pequenas cirurgias (introdução de silicone) para obtenção de formas femininas, visando principalmente o crescimento dos seios.

Quando fala em “hormônios”, o delegado refere-se à pílula anticoncepcional. A sua comercialização começa nos anos 1960 e as travestis rapidamente descobririam que, como efeito colateral, o consumo desse medicamento produziria o crescimento dos seios e a redistribuição da gordura para partes do corpo consideradas femininas. Curiosamente, no entanto, apesar de fazermos uso da pílula desde praticamente o seu surgimento, ainda hoje não consta, na bula, qualquer referência aos efeitos que o medicamento produz nos nossos corpos.

Além disso, esse é o momento em que as intervenções cirúrgicas envolvendo silicone, sobretudo o industrial (substância usada para limpeza de máquinas e, portanto, imprópria para o corpo humano, perigosíssima, mas que permite a construção, da noite pro dia, de um corpo que mesmo as mulheres cisgêneras mais desejadas não possuem), tornam-se mais e mais frequentes.

A mensagem por trás do gesto é nítida, pois se, antes, nossas identidades não podiam ser validadas em função do corpo que possuímos, agora somos capazes de mudar os nossos corpos e forçar a sociedade a nos ver da forma como nós mesmas nos entendemos. Uma transformação permanente, aliás, e irreversível em boa medida, o que se tornaria uma poderosa mensagem: “não voltaremos a existir como homens”. E, com o corpo carregando explicitamente as marcas dessa recusa a caber nas normas, o que sobra para as travestis? Prostituição.

A partir dali, essa seria a única forma de conseguir viabilizar a existência para a enorme maioria desse grupo e, para a surpresa da sociedade, nós estávamos de fato conseguindo existir a partir desse dinheiro, desse trabalho. O que leva a outro ponto do estudo de Fonseca, um dos nomes de maior destaque na perseguição a travestis durante a Ditadura Militar: diante do fato de estarmos ocupando cada vez mais espaços no cenário urbano, magistrados ressuscitaram uma lei que, à época, não era mais aplicada às prostitutas cisgêneras, mas que podia ser distorcida para focar especificamente nas prostitutas travestis, a “Contravenção Penal da Vadiagem” (artigo 59 do Decreto-Lei n°3.688/1941, em vigor ainda hoje).

Segundo o delegado, “a maioria dos estudiosos consideram a prostituição feminina um mal necessário”, com “uma importante função social, qual seja, a de preservar a moralidade dos lares, a pureza dos costumes no seio das famílias”. O mesmo, no entanto, não poderia ser dito da prostituição exercida por travestis, motivo pelo qual decidiram que a Lei da Vadiagem ainda seria aplicável a estas. Inúmeras de nós fomos presas, décadas e décadas existindo sob a ameaça diária e iminente de prisão. A prostituição era a única fonte de renda possível para corpos como os nossos e a Lei da Vadiagem foi a forma encontrada, pelo Estado, para impedir que exercêssemos esse trabalho.

Muitas de nós morreram, muitas de nós foram presas, diversas vezes presas, aliás, mas aos poucos fomos nos impondo até chegar aos dias de hoje, em que a sociedade começa a se dar conta da força e beleza de nossas existências. Se estou aqui hoje existindo, escrevendo, e se vocês estão aqui ouvindo o que tenho a dizer, tudo isso só foi possível por conta dessas inúmeras travestis que por décadas, séculos quem sabe, recusaram-se a acreditar que a identidade de “homem” era a única que lhes cabia, travestis que fizeram da prostituição uma trincheira na guerra declarada contra nós.

Amara Moira, nascida e criada em Campinas, é uma transexual, feminista, escritora e professora de literatura na plataforma Descomplica. Doutora em teoria literária pela Universidade Estadual de Campinas, e, com isso, se tornou a primeira mulher trans a obter o título pela referida universidade usando seu nome social. Amara também é colunista no blog BuzzFeed Brasil. E tem obras, como o livro “E Se Eu Fosse Puta” publicadas.

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