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TRAVESTI OU TRANSEXUAL: QUAL O CERTO?

TRAVESTI OU TRANSEXUAL: QUAL O CERTO?

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Redação Amara Moira

5 minutos de leitura
TRAVESTI OU TRANSEXUAL: QUAL O CERTO?

Por Amara Moira

A gente costuma brincar que, se recebesse um real cada vez que respondesse essa pergunta, hoje estávamos todas ricas, mas não liguem, isso é só o nosso tradicional deboche, traço marcante da comunidade trans. É, sim, importante se perguntar a respeito, é importante querer conhecer mais sobre essa e outras questões envolvendo a nossa comunidade, sobretudo se seu interesse é genuinamente contribuir para um mundo em que não sejamos mais tão discriminadas.

Por muito tempo achei que essa pergunta já tinha dado o que tinha pra dar, que já tinha sido dito tudo o que havia para se dizer a respeito, mas ultimamente venho mudando de ideia, entendendo que é possível tirar coisas proveitosas dessa pergunta. A mais importante delas sendo justamente mostrar que esse debate implica toda a sociedade, não apenas nós.

Como assim? Bom, talvez, antes de se perguntar qual o termo certo, ou mesmo se existe termo certo, o mais interessante fosse se perguntar sobre a origem da diferenciação. Quando voltamos às origens dela, muita coisa fica mais clara, como por exemplo os motivos que motivaram ao surgimento e diferenciação dos dois termos.

Veja bem: quando nos fazemos essa pergunta, estamos discutindo tão somente o lado feminino da comunidade trans. Do outro lado, existe apenas a categoria política de homens trans, que, desde o I Encontro Nacional de Homens Trans (ENAHT), em 2015, abarca as inúmeras identidades transmaculinas (ou seja, de pessoas criadas para ser mulher, em função do genital com que nasceram, mas que rechaçam esse gênero e reivindicam uma identidade masculina ou não-binária).

Um dos fatores que mais colaborou para existirem duas possibilidades no lado feminino (mulher trans[exual] ou travesti) e apenas uma no lado masculino foi a possibilidade concreta de recorrer a uma cirurgia de redesignação sexual (CRS), a tal da “mudança de sexo”. No caso dos homens trans, ainda hoje a cirurgia é considerada experimental, o que significa que pouquíssimos hospitais a realizam e que os valores cobrados por ela são absurdamente mais altos. Sem contar que, no quesito realismo, há um abismo separando as duas.

Mas a CRS nem sempre existiu e, quando começa a entrar no horizonte do possível, em fins da década de 1940, houve também a necessidade de defender que ela fazia sentido. E é justamente nessa tentativa de demonstrar a importância da intervenção cirúrgica que surge o termo “transexual”. 

O termo é um contraponto a “travesti”, termo mais antigo e presente nas principais línguas europeias, mas que remete à experiência do vestir-se com roupas atribuídas ao outro gênero (“trans” + “vestir”), mais do que a um desejo de possuir o genital esperado para o gênero com o qual a pessoa se identifica (“trans” + “sexual”). Hoje as coisas mudaram muito, hoje podemos falar em mulheres de pênis e homens de vagina, mas, àquela altura, tudo isso era impensável.

Daí que, com o desenvolvimento das técnicas cirúrgicas que permitiam redesenhar os genitais, sobretudo de pênis para vagina, era preciso provar que isso não seria pura e simplesmente uma mutilação, mas sim um procedimento necessário para o bem-estar da paciente. Para dar conta disso, a medicina criou a diferenciação entre as duas identidades: de um lado, pessoas que se contentavam em vestir-se com roupas atribuídas ao outro gênero (e, para tanto, o máximo que reivindicavam era a descriminalização da prática) e, de outro, pessoas que desejavam não só essa experiência, mas também possuir o genital que se esperaria para o gênero com que elas se identificam.

Essa diferenciação, no entanto, por mais que tenha conseguido trazer a prática para o âmbito da legalidade (o que, no Brasil, vai acontecer só no finzinho do sXX, duas décadas após o processo que condenou, em primeira instância, o cirurgião Roberto Farina a dois anos de prisão por lesão corporal gravíssima — pela realização da cirurgia antes da aprovação do Conselho Federal de Medicina), acabou por aumentar o estigma que envolvia a noção de travesti.

Por quê? O argumento era o seguinte: transexuais são mulheres que nasceram no corpo errado, a cirurgia servindo para corrigir esse erro da natureza; já travestis são homens que gostam de se vestir de mulher, estão à vontade com o próprio corpo, não precisando nem desejando nenhuma intervenção corporal. Tal argumento foi tornando possível que mulheres transexuais se reivindicassem e fossem reconhecidas como mulheres, mas tornou ainda mais aberrante a ideia de alguém que queira vestir roupas entendidas como femininas sem querer possuir o genital que se esperaria para esse gênero.

Além disso, a identidade travesti sempre foi muito associada à prostituição, à exclusão social, à violência, ao exagero, o que fez com que muitas pessoas preferissem se identificar como transexuais (ou trans, sua forma abreviada) para fugir a essas associações.

Percebam, no entanto, que tentar dividir o lado feminino da comunidade trans em função do genital que as pessoas desejam possuir é profundamente problemático, pois uma das nossas principais reivindicações é questionar a necessidade de termos um genital específico para termos nosso gênero reconhecido. Ou seja, não importa o genital que eu tenha ou queira ter, o gênero nada tem a ver com isso.

Portanto, hoje é comum que muitas mulheres transexuais e travestis tentem borrar a diferença entre os dois termos, defendendo que eles são sinônimos: “pessoas que foram designadas do sexo masculino ao nascer, mas que reivindicam uma identidade feminina”. Ponto. O genital que elas têm ou desejam ter, isso pouco importa.

O que nos leva à questão lançada no título: qual o termo certo, então? Ambos. Tudo o que você precisa fazer é, antes, perguntar à pessoa com qual termo ela se sente mais confortável, só isso. Eu, por exemplo, por conta de toda a história de resistência e rebeldia, prefiro mil vezes o termo travesti.

Amara Moira, nascida e criada em Campinas, é travesti, feminista, escritora e professora de literatura na plataforma Descomplica. Doutora em teoria literária pela Universidade Estadual de Campinas, e, com isso, se tornou a primeira mulher trans a obter o título pela referida universidade usando seu nome social. Amara também é colunista no blog BuzzFeed Brasil. E tem obras, como o livro “E Se Eu Fosse Puta” publicadas.

Confira os textos anteriores da Amara para o Fatal Blog:

Prostituição e a história travesti no Brasil.

Ainda é preciso coragem para amar uma travesti?

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