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AINDA É PRECISO CORAGEM PARA AMAR UMA TRAVESTI?

AINDA É PRECISO CORAGEM PARA AMAR UMA TRAVESTI?

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Redação Amara Moira

4 minutos de leitura
AINDA É PRECISO CORAGEM PARA AMAR UMA TRAVESTI?

Por Amara Moira

Há algo, na sociedade, que entra em curto circuito pela simples existência de pessoas trans e eu própria já fui vítima e carrasca nesse sentido. Quinze anos atrás, quando eu ainda não tinha a menor ideia de que um dia eu me assumiria travesti, lembro-me perfeitamente de acreditar que, por estar namorando uma mulher trans, eu só poderia ser bissexual.

Eu já me entendia como bissexual, aliás, ficava às vezes com homem, às vezes com mulher, conseguia sentir atração pelos dois gêneros, mas foi só quando eu me relacionei com uma mulher que tinha pênis que eu senti a prova contundente de que era bissexual.

Logicamente, esse raciocínio é bifóbico (ou seja, um raciocínio que discrimina bissexuais) e eu gostaria de nem precisar explicar o porquê de ele ser bifóbico, mas, vivendo na sociedade em que vivo, sei que nada disso é tão claro quanto eu gostaria que fosse. Bom, minha namorada já naquela época sabia que isso era absurdo, ficava possessa quando eu dizia uma coisa dessas, mas eram tão escassas as possibilidades para uma pessoa trans de se relacionar com alguém que ela acabava me tolerando no final das contas.

Ela era uma mulher que tinha pênis, ponto final. Nada no seu corpo era masculino, coisa que hoje em dia já é bem mais compreensível, mas que naquela época era a vanguarda da vanguarda da vanguarda do pensamento militante. Mesmo na militância LGBTQIA+ isso não era unanimidade, aliás. Hoje temos uma Linn da Quebrada que, em sua canção “Mulher”, fala de uma travesti que “tem cara de mulher / ela tem corpo de mulher / ela tem peito / tem bunda / tem jeito / e o pau de mulher”, hoje temos uma Indya Moore hiper provocativa postando no Twitter que “se uma mulher tem pênis, o pênis dela é um pênis biologicamente feminino”, mas outros tempos eram aqueles, tenebrosos, e eu nem imagino o que a minha então namorada teve que passar ou as outras pessoas trans que já haviam transicionado naquele período e antes.

O engraçado é que me criaram para ser homem, me disseram, quando eu nasci, “você é um homem” e eu acreditei nessa pataquada por anos, até inventar dentro de mim coragem para enfrentar a sociedade e ir tentar descobrir se haveriam formas de existir que fossem mais a minha cara. Finalmente encontrei aos 29 anos, momento em que me permiti usar roupas femininas no Carnaval e ver como as pessoas reagiam ao me ver toda produzida daquele jeito, daí um mês depois, quando comecei a me hormonizar escondido e, por fim, dia primeiro de maio de 2014, quando pedi pra primeira pessoa me chamar de Amara.

Desse dia em diante, eu comecei a viver o outro lado da moeda, o lado que a minha ex-namorada lá no longínquo 2006 teve que encarar comigo. Foi só então, também, que eu entendi porque ela tinha pavor da ideia de se relacionar com uma pessoa bissexual, tolerando se relacionar comigo apenas porque me amava muito. Qual o motivo desse pavor? Vivendo num mundo que deslegitima o tempo todo a nossa identidade, namorar uma pessoa bissexual é nunca ter certeza se ela te vê como homem ou como mulher.

Isso é profundamente bifóbico também, jamais defenderia isso. Significa, no fundo, que não há confiança na palavra da pessoa com quem você se relaciona, que somente a relação com uma pessoa que tem aversão à ideia de se envolver com alguém do mesmo gênero poderia nos assegurar que estamos sendo vistas da forma como nos entendemos. Autoestima baixa? Claro que sim, mas como construir autoestima num mundo que nos joga o tempo todo na lama, não é mesmo?

E falei disso tudo para contar o quanto demorei para me sentir segura, à vontade, numa relação com outra pessoa, bissexual ou não. Hoje, já não me importa o que a pessoa ache de mim, mas logicamente eu só aceitarei me relacionar com alguém em quem eu confie que me vê como eu sou, alguém que sinta admiração por eu ser quem sou, por se relacionar comigo, ou seja, alguém que não pire na batatinha ao descobrir que sente atração por uma travesti.

Antigamente, a única forma legítima de ser considerada mulher era nascendo com vagina e a única forma legítima de ser considerado homem era nascendo com pênis. Hoje a gente sabe que isso é balela e que há mulheres maravilhosas que possuem (ou possuíram) pênis, assim como homens incríveis, deliciosos, que não têm (e muitas vezes nem querer ter) pênis. Hoje a gente vai aprendendo também que, independente do genital que a pessoa tenha ou queira ter, o que vale é como ela se entende… e que a relação mais bonita, seja ela sexual ou afetiva, é a entre duas figuras que se entendem e se respeitam.

Como escrevi no meu livro “E se eu fosse puta” (hoo editora, 2016), meu sonho é poder existir num “mundo onde não seja preciso coragem nem desconstrução para amar uma travesti” e repito essa frase aqui, torcendo para ela um dia fazer sentido e ninguém mais se sentir mal seja por ser uma travesti apaixonada, seja por estar apaixonado por uma travesti (até porque o que a gente mais é é apaixonantes, mesmo).

Amara Moira, nascida e criada em Campinas, é uma transexual, feminista, escritora e professora de literatura na plataforma Descomplica. Doutora em teoria literária pela Universidade Estadual de Campinas, e, com isso, se tornou a primeira mulher trans a obter o título pela referida universidade usando seu nome social. Amara também é colunista no blog BuzzFeed Brasil. E tem obras, como o livro “E Se Eu Fosse Puta” publicadas.

Confira o primeiro texto da Amara para o Fatal Blog sobre Prostituição e a história travesti no Brasil.

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